sábado, novembro 10, 2007

Um real a menos

Babel 29-10-07

Por Lívia Nery

Fui obrigada a fazer o Salvador Card esta semana, quando finalmente decidi usufruir dos meus direitos de estudante e pagar meia-passagem nos ônibus de Salvador. No Comércio, o único posto oferecido para emitir primeira e segunda via do cartão me aguardaria com hora marcada, conforme o agendamento que eu havia feito semanas antes. Um princípio de mau humor já se fazia presente, pelos 24 reais que seriam pagos de uma só vez e pelas queixas em relação ao sistema que eu escutei por aí. Depois de subir dois lances de escada me surpreendi com a tranqüilidade e pouco movimento no lugar. Não demorou até que eu fosse atendida.

"Identidade e RM, original e cópia", requereu Marlene do guichê 1, com uma sombra azul ao redor dos olhos no mesmo tom da logomarca do Salvador Card estampada em sua farda. Depois de digitar algumas palavras no sistema ela me convidou a esperar na sala ao lado, onde iam tirar a minha fotografia: "Fotografia?", perguntei surpresa, completamente desprecavida para sair bem na pose, num mau-humor maior do que antes.

Com uma câmera digital e uma tela branca ao fundo, um outro funcionário cujo nome não guardei me recebeu. Preocupado em produzir a tal foto, indicou-me onde deixar bolsa e em que posição ficar. Percebendo que eu não tiraria os óculos escuros, disse que não era autorizado a fotografar assim. Tive que ceder: sem foto, sem cartão. Como toque final da obra, ele ainda me aconselhou retirar os fones de ouvido e consertar a alça do soutien que aparecia e ficava feio. "Tira logo essa foto", respondi ríspida enquanto o mau humor crescia.

Foto tirada, vou ao guichê 3: "Identidade e RM", pediu um outro homem cujo nome eu não fazia mais questão de saber. "Mas eu já mostrei no guichê 1", "Mas eu preciso checar novamente", respondeu. A essa altura RM, identidade e xerox haviam sido esquecidos na sala da fotografia, para onde tive que voltar. "São 24 reais", finalizou o funcionário do guichê 3, me encaminhando ao guichê 7 depois de receber o pagamento. "Identidade e RM", solicitou a funcionária do guichê 7. "Não é possível!", respondi, procurando os documentos que havia guardado na bolsa.

Depois de assinar uns papéis e pegar um comprovante ainda passei pelo guichê 9 para receber o cartão. Foi quando o mau-humor beirou o insuportável ao ver o resultado da fotografia e ter a última surpresa: Os 24 reais, ao contrário do que eu imaginei, não davam direito a doze passagens de ônibus. Eram "só para a confecção do cartão", como me explicou a última funcionária com quem tive que falar. Exasperada e inconformada com o gasto, desisti de pegar a fila para carregar meu recém-adquirido Salvador Card e paguei outros dois reais para voltar para casa, como se não fosse estudante.

Teoria da conspiração

No caminho para casa, fique pensando que tudo fez parte de um complô dos empresários de ônibus — idealizadores e responsáveis pela implementação do Salvador Card na cidade — para retardar o quanto fosse possível meu acesso ao benefício que me é garantido por lei. A demora no agendamento, o atendimento fordista e irritante e, futuramente, a falta de comodidade que eu enfrentaria com poucos postos de recarga e longas filas são uma amostra da pouca importância dada aos estudantes que, para desfrutar do seu direito à meia-entrada, precisam pagá-las antes mesmo de andar de ônibus.

É verdade que muito já se falou, mas nunca é demais lembrar das absurdidades deste que é dos mais eficazes sistema de crédito antecipado de que eu já tive conhecimento. Os problemas são maiores em se tratando dos estudantes: ao contrário das empresas, que recarregam os cartões dos seus funcionários via internet, quem estuda perde tempo e dinheiro para se dirigir a um dos três postos de recarga no máximo três vezes ao mês e pagar valores altos quando, muitas vezes, o costume é receber aos poucos o dinheiro para o transporte. Sistemas como estes deveriam, no mínimo, funcionar como a recarga de celulares, que podem ser feitas em casas lotéricas, supermercados, bancos, pela internet, quantas vezes for necessário.

Condicionar o direito à meia-passagem ao crédito pré-adquirido, por si só, já é uma distorção. Da forma como funciona no Salvador Card, quando os créditos terminam, o estudante paga inteira. O comprovante de matrícula, documento que deveria verdadeiramente garantir os benefícios de quem estuda, é substituído pelo cartão plástico com a conivência de instâncias como Ministério Público e do próprio governo municipal, que, sem fôlego para peitar os empresários de ônibus, perdeu completamente as rédeas do transporte público na cidade.

Como prova da eficiência dos empresários quando o assunto lhes convém, Salvador teve o sistema de bilhetagem eletrônica mais rapidamente implementado em todo o país. Em dois anos os validadores já estavam instalados em todos os ônibus e os vales-transporte de papel extintos. Toda eficiência e tecnologia na bilhetagem contrasta radicalmente com o estado do transporte, cuja frota foi considerada recentemente uma das mais velhas do país (e as passagens das mais caras).

Outros detalhes como o prazo de dois meses para expiração dos créditos e o bloqueio no caso de faltas consecutivas à escola demonstram a vontade incessante das empresas de ônibus em dificultar a vida de quem tem direito a benefícios envolvendo o transporte. A cada reajuste as gratuidades são apontadas como causadoras de déficit nas contas das empresas de ônibus, com a ladainha inaceitável de que operam no vermelho.

Desse jeito, ficou claro porque eu não seria bem-vinda num sistema de transporte coletivo controlado por empresários ávidos por lucratividade: antes de ser estudante, eu era um real a menos em cada passagem.

livianery@nacoco.com.br

retirado de www.nacoco.com.br

Manelé na Tela

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