MEU PEQUENO BÚLGARO
"Eu achava que as palavras eram inofensivas. Para mim, o politicamente
correto era folclore. Já não penso assim"
Diagnosticaram uma paralisia cerebral em meu filho de 7 meses. Vista de
fora, uma notícia do gênero pode parecer desesperadora. De dentro, é muito
diferente. Foi como se me tivessem dito que meu filho era búlgaro. Ou seja,
nenhum desespero, só estupor. Se eu descobrisse que meu filho era bú
lgaro, minha primeira atitude seria consultar um almanaque em busca de
informações sobre a Bulgária: produto interno bruto, principais rios, riquezas
minerais. Depois tentaria aprender seus costumes e sua língua, a fim de
poder me comunicar com ele. No caso da paralisia cerebral, fiz a mesma
coisa. Passei catorze horas por dia diante do computador, fuçando o assunto
na internet. Memorizei nomes. Armazenei dados. Conferi estatísticas. Pelo
que entendi, a paralisia cerebral confunde os sinais que o cérebro envia aos
músculos. Isso faz com que a criança tenha dificuldades para coordenar os
movimentos. Meu filho tem uma leve paralisia cerebral de tipo espástico. Os
músculos que deveriam alongar-se contraem-se. Algumas crianças ficam
completamente paralisadas. Outras conseguem recuperar a funcionalidade. É
incurável. Mas há maneiras de ajudar a criança a conquistar certa autonomia,
por meio de cirurgias, remédios ou fisioterapia. Um dia meu filho talvez reclame desta coluna, dizendo que tornei público seu
problema. O fato é que a paralisia cerebral é pública. No sentido de que é
impossível escondê-la. Na maioria das vezes, acarreta algum tipo de deficiê
ncia física, fazendo com que a criança seja marginalizada, estigmatizada. Eu
sempre pertenci a maiorias. Pela primeira vez, faço parte de uma minoria. É
uma mudança e tanto. Como membro da maioria, eu podia me vangloriar de
meu suposto individualismo. Agora a brincadeira acabou. Assim que soube
da paralisia cerebral de meu filho, busquei apoio da comunidade, entrando
em tudo que é fórum da internet para ouvir o que outros pais em minha
condição tinham a dizer sobre os efeitos colaterais do Baclofen ou sobre a
eficácia de tratamentos menos ortodoxos, como a roupa de elásticos dos
astronautas russos usada numa clínica polonesa. A paralisia cerebral de meu filho também me fez compreender o peso das
palavras. Eu achava que as palavras eram inofensivas, que não precisavam
de explicações, de intermediações. Para mim, o politicamente correto era
puro folclore americano. Já não penso assim. Paralisia cerebral é um termo
que dá medo. É associado, por exemplo, ao retardamento mental. Eu não
teria problemas se meu filho fosse retardado mental. Minha opinião sobre a
inteligência humana é tão baixa que não vejo muita diferença entre uma
pessoa e outra. Só que meu filho não é retardado. E acho que não iria gostar
de ser tratado como tal. Considero-me um escritor cômico. Nada mais cômico, para mim, do que uma
esperança frustrada. Esperança frustrada no progresso social, na força do
amor, nas descobertas da ciência. Sempre trabalhei com essa ótica
antiiluminista. Agora cultivo a patética esperança iluminista de que nos pró
ximos anos a ciência invente algum remédio capaz de facilitar a vida de meu
filho. E, se não inventar, paciência: passei a acreditar na força do amor. Amor
por um pequeno búlgaro.
segunda-feira, outubro 25, 2004
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