quinta-feira, novembro 06, 2008

Sobre uma questão extremamente polêmica e delicada

Bom, Willow, sobre a questão da anistia, eis o que (por ora) penso:

1. Acho que, assim como um torturado tem o legítimo interesse em ver seu torturador punido, também uma vítima de algum atentado promovido por aqueles que contra a ditadura lutaram tem o legítimo interesse em ver seu agressor punido. Por isso, acharia injusto restringir unilateralmente a possibilidade de punição a quem quer que seja.

2. Por conta do que disse acima, acho contraproducente uma revisão unilateral da anistia, pois só reviver-se-ia um confronto que por si só é eivado de injustiças - e não apenas contra aqueles que foram torturados, mas também contra os que se viram por força das circunstâncias no meio da disputa, como algum embaixador seqüestrado, ou alguma vítima de "justiçamento".

3. Acho que esta discussão vem enviesada indevidamente pela Comissão de Direitos Humanos do governo. Não se trata meramente de uma luta por justiça e pelos direitos humanos que os movem, mas por uma revanche ideológica e política (por mais clichê que essa expressão possa parecer). Acho condizente um torturado ou os familiares de mortos e desaparecidos lutarem especificamente pelo que os concerne, mas não acho condizente o governo combater (e mobilizar esse combate) unicamente nesse foco específico. Porque o governo deve se preocupar não só com a tortura que ocorreu na ditadura, mas também com as que ocorreram antes dela e as que continuaram a ocorrer depois, e sobretudo com as que continuam a ocorrer hoje.

4. Portanto, direcionar o esforço para esse foco não é unicamente uma luta pelos Direitos Humanos, mas uma luta contra a ditadura. Promovem não com o fito de acabar com a tortura no país, que ocorre dentro do aparelho do Estado (em delegacias, penitenciárias) e na própria sociedade (em favelas, promovidas por traficantes ou policiais). Promovem esse desejo de revisão da anistia porque ainda querem lutar politicamente contra a ditadura. Não estão empenhados em levar a debate a tortura que ainda ocorre hoje, levam esta questão porque eles próprios e sua militância foram atingidos. O preso torturado numa delegacia, ou um infeliz torturado numa favela, não faz parte da militância, pelo contrário, são exemplos do descuido de uma área do qual eles são os responsáveis por zelar. Se miram no antes e não no agora é por questão de militância, e eu acho que os Direitos Humanos são para todos, e o que urge é o que está acontecendo agora.

5. Compreendo que a punição da tortura promovida por militares constitua um ato simbólico de luta contra esse crime, até porque era uma prática que se configurou como método, mas para simbolismo da questão é imprescindível que aqueles que a desejam rejeitem o ato contra o qual lutam de forma gera, categórica e irrestrita. Mas isso não ocorre. Quando estes artífices do governo pararem de justificar a ditadura cubana (muito mais assassina que a brasileira) e pararem de paparicar os seus líderes, tratando-os como heróis, talvez veja com mais coerência o pedido (sempre, no entanto, levando em consideração os dois pontos iniciais que levantei).

6. Por fim, só a título de justiça histórica, considero falaciosa a premissa segundo a qual todos aqueles que decidiram pegar em armas para lutar contra a ditadura o fizeram para promover a democracia. Muitos que resistiram, sim, mas muitos que resistiram pela luta armada, não. Até sabemos que queriam derrubar a ditadura, mas muitos nunca esconderam (embora a maioria hoje queira ocultar, e muito de nós esquecer) que queriam derrubá-la para instalar outra ditadura, embora para eles mais virtuosa. Muitos eram declarados stalinistas e muitos almejavam para o Brasil um regime cubano, ou não?

Esta é uma questão extremamente polêmica e delicada e sobre a qual reluto muito em comentar porque pode para muitos parecer que ser contra a revisão unilateral da anistia contra torturadores é contribuir indiretamente para sua defesa. Minha opinião é que se esqueça sim o que aconteceu, embora compreenda que aqueles que foram diretamente atingidos queiram punição. A que me oponho é a uma revisão incoerente e unilateral. Acho que isto seria contraproducente, e nem entro no mérito jurídico.

Márcio

5 comentários:

Manelé na Tela disse...

Para Márcio e Willow, dúvidas de quem ainda não fechou opinião sobre o assunto (mas tem uma clara tendência a ir contra os ditadores):

1. Como essa questão vem sendo tratada em outros países? Há revanchismo também? Temos bons exemplos a seguir?

2. O fato dos que pegaram em armas terem lutado contra um regime/Estado que nasceu violento tinha a repressão de direitos como lei ameniza os crimes que eles cometeram?

3. Pode-se responsabilizar na mesma medida Estado e cidadão pelos assassinatos da época?

4. A Ditadura é, por si só, abominável e criminosa?

5. Outro governo, que não tenha tido seus personagens torturados nem relação com Cuba, teria mais credibilidade para tocar esse processo? Imaginemos um governo do DEM, só a título de exemplo.

6. A tortura corroborada pelo Estado é igual às outras citadas?

7. Essa é uma luta específica contra os militares que torturaram ou contra nossa própria história?

8. Se considerarmos que é contra a própria história do Brasil (como nação, instituição, sei lá o quê), que outras "revisões" temos a fazer? Escravidão, Guerra do Paraguai etc?

Amoêdo

Manelé na Tela disse...

Vamos ver...

Um preâmbulo: Não há aqui a tendência de ir contra os "terroristas", ou a favor de ditadores; nem tenho uma opinião fechada sobre o assunto.

1. Acho que no nosso caso o bom exemplo a seguir é o que está sendo seguido até aqui, pois as ditaduras dos países vizinhos foram muito mais violentas, mesmo aquelas que duraram menos tempo. A Argentina mesmo, que durou bem menos que a nossa, tem entre mortos e desaparecidos cerca de 40 mil pessoas, e isso para uma população menor. Vítimas da brasileira foram menos de 500. Então acho que a comparação fica indevida, pois lá certamente se trata de genocídio (aplicando o termo a uma matança generalizada sem caráter étnico).

2. Não acho que ameniza, até porque não acho que foi necessária para a democratização (inclusive, foi a opção de uma minoria), nem que era o objetivo da maioria dos que pegaram em armas.

3. A responsabilidade de cada um vai de caso a caso, cada um na medida de sua culpabilidade. Evidente que o Estado tem responsabilidade maior, afinal tem como finalidade proteger o cidadão, e não eliminá-los. Mas não dá para dizer (e eu não disse) que não há responsabilidade para o cidadão.

4. A Ditadura é por si só abominável e criminosa.

5. Teria.

6. Não é igual, é mais grave; mas as outras não deixam de ser reprováveis nem isentam seus responsáveis.

7. É uma revisão contra os militares (porque só a eles se quer atingir) e contra a nossa história (porque se quer negar o caráter de um dado histórico - que a anistia alcançou a todos -, o que pressupõe que não houve crime do outro lado). Não acho que devemos fazer essas "revisões".

8. Não acho que deva haver "revisões".

Márcio

PS: Mais uma vez, depois complemento, vou numa palestra.

Manelé na Tela disse...

Bem esclarecido, mas diante das respostas lanço uma nova questão. Se a Ditadura é, por si só, abominável e criminosa, não seria mais fácil então se vingar por este crime que os "terroristas" não cometeram?

Amoêdo

P.S. Em relação ao ponto 3, eu coloquei de um lado os militares que mataram em nome do Estado e do outro os cidadãos "terroristas" que mataram em nome de seja lá o que for. A questão é se o cara que mata em nome do Estado tem mais responsabilidade que o outro ou não.
Em relação ao ponto 5 me pergunto se há mais ideologismo e politicagem no processo ou na crítica a ele.

Manelé na Tela disse...

A minha opinião é que não se deve procurar vinganças. Deve-se, como até agora, procurar reparação. Sou contra revisar a anistia porque não acho possível revisar de um lado só.

Acho que o Estado tem uma responsabilidade maior, sim. O Estado. Mas cada caso (se desconsiderássemos a anistia vigente) deve ser julgado na sua particularidade. Quem matou responderia pelo seu homicídio, assim como quem torturou responderia pela tortura que praticou, e assim por diante. Cada qual com sua responsabilidade. Assim para ambos os lados da disputa.

No mais, acho que revisar a anistia invariavelmente irá reavivar a disputa ideológica, pois ela imediatamente levanta questões sobre quem levanta essa campanha neste momento, sob quais circunstâncias, com que pertinência, de que forma e com que finalidade.

Será impossível revisar a história só por um dos lados.

Márcio

Manelé na Tela disse...

Não tive tempo ainda, mas quero comentar tb, já que fui eu quem pediu esse post.

Mas Zé representou-me bem com as dúvidas dele e estou refletindo sobre as resposta de Marcinho

Willow