Meu pai é um rubro-negro chato, que me pirraçava. Quem me conhece sabe que nossa relação nunca foi das melhores e a rivalidade futebolística só evidenciava isso. Não foi por outro motivo senão confrontá-lo que eu virei Bahia. Acabei me apaixonando pelo clube depois, mas o pontapé inicial foi o prazer do afrontamento, da petulância, da rebeldia.
Como o jogo já tinha acabado há muito tempo, minha esperança era que ele estivesse dormindo. Eu morava num sobrado, na Federação. Quando Chica parou o carro, eu vi a luz da sala acesa. Só podia ser ele assistindo TV. Minha irmã e minha mãe não ficavam acordadas até tão tarde. Eu ainda não tinha conseguido parar de chorar. Me despedi de Chica, nem olhei pra cara de Clara, abri o portão devagar e sentei na ponta da escada, pra ver se a luz se apagava. Nada.
Meu pai nunca ficava acordado até mais tarde. Ele trabalhava de turno, em Camaçari, no Pólo. Dormia cedo porque muitas vezes tinha que ficar 24 horas seguidas trabalhando. Mas eu não sabia porque porra ele teimava em ficar acordado aquela noite. Como eu sabia disso, achei que minha espera ia ser rápida. Ledo engano. O tempo passava, o choro não, o cansaço também não, a raiva não, o medo não, e a luz também não apagava. Contei no relógio. Uma hora e meia de espera. Quase 2h da matina.
Ele sabia que minha programação incluía o show. E eu pensando, o filho da puta tá me esperando só pra me sacanear. E me revoltava duplamente com a situação: que porra de pai que eu tenho? E todos os traumas da infância e da adolescência, de nossa convivência conturbada, vinham à tona. E se misturavam com a dor de ver o time relegado ao submundo do futebol nacional. Puta que pariu, que angústia.
Até que começou a chover, a luz não apagava, não teve jeito. Subi a escada. Devagar. Cada degrau, com a esperança de ver a luz apagar. Pensei em dormir na varanda, mas ele podia ver, me acordar me chamando de covarde. A janela tava aberta. Não. Resolvi encarar. Eu era homem ou que porra?! Mas ia enfrentar a batalha com honra. Não ia ceder. Fiz toda a força do mundo pra segurar o choro, passar de cabeça erguida, sem olhar pra baixo, sem titubear. Facilitaria a nossa convenção de não cumprimentar um ao outro. Pela primeira vez senti alívio pelo fato de meu pai não me dizer “boa noite”, nem vice-versa. Sem ter que abrir a boca, eu não corria o risco de esmorecer, deixar escapar a voz embargada.
Respirei fundo e abri a porta. Uma última ponta de esperança me fez pensar que ele estivesse dormindo, porque ele tava deitado, com a cabeça de costas pra porta. Rodei a maçaneta lentamente e fechei bem devagar. No estalar no trinco, ele deu um pulo e se levantou rapidamente. Puta que pariu, eu pensei. Me fudi. Tudo que eu queria era passar batido, sem ter que olhar pra cara dele. Mas ele levantou. Que merda, pensei.
Olhei pra ele e sucumbi. Camisa do Bahia, calça jeans, cara inchada, molhado, a imagem da derrota. Baixei a cabeça e os ombros e fiquei parado na frente dele, esperando a bomba. Segurar o choro já tinha virado uma malfadada intenção. Ele se aproximou, não disse nada. Pegou minha cabeça por trás, botou no ombro dele e me abraçou. Eu correspondi. Abracei-o pela cintura. Chorei, chorei pra caralho. Aquele choro de soluço. Que sufoca. Que dá aquele nó na garganta. Que faz latejar e doer a cabeça.
Eu não conseguia falar. Ele também não falava nada. Rapaz, devem ter sido só cinco minutos. Mas pra mim, pareciam dias. Ele pegava minha cabeça, apertava e fazia carinho, em silêncio. Eu só conseguia chorar. Um misto de alívio, alegria pelo gesto dele, tristeza pela queda, enfim, um desabafo. Passado aquele tempo, ele beijou minha testa, me desejou boa noite, me chamou de filho, e foi dormir.
Parece uma experiência comum de pai e filho, mas pra quem conhece da minha relação com seu André, sabe que não foi.
Aquele foi o segundo abraço que meu pai me deu na vida. O primeiro e único por iniciativa dele. O primeiro de todos, inesquecível, é uma das memórias mais nítidas da minha infância. No meu aniversário de cinco anos. Ele chegou de surpresa e eu corri na porta pra abraçá-lo.
Outra coisa marcante é que, naquele já dia 09 de novembro, véspera do aniversário dele, foi a primeira vez que eu vi meu pai chorar. Na verdade, não vi, ouvi, porque na minha posição não deu pra ver o rosto dele. Também foi a única vez que ouvi meu pai me chamar de filho e me fazer cafuné.
Nosso terceiro abraço ainda não rolou. Mas eu cansei de ficar esperando. Foda-se o orgulho. Vou lá pedir, antes que seja tarde. Alguém tem que ceder. 10 anos já foi tempo demais... a torcida do Bahia que o diga.
E ainda tem gente que acha que futebol é besteira...
D. Sena,
Que não é “Moura Machado”, mas filho de um cara com esse sobrenome, que ama o tal cara pra caralho, apesar de tudo, e que, também apesar de tudo, morre de saudades do seu André.
terça-feira, setembro 11, 2007
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6 comentários:
Bem, Willinho,
Como contei com a colaboração de Pedro, tá aí a parte 2.
Bjs,
Dadá
Putz, bom pra caralho Darininho. Peço permissão pra mostrar pra meu pai.
Emocionado,
Willow
Muito bom, velho!!
Excelente história e belo texto!
Rafson
Bom galera, pe�o reservas na hora de mostrarem o texto para os outros, porque � uma parada bem �ntima.
Mas pro pai, Willinho, claro que pode mostrar.
Ah, e obrigado a todos por poder compartilhar isso com voc�s.
Bjs,
O autor.
acredita que estou chorando? Porra, Dau, vc me fez chorar no trabalho! Puta que pariu! rs
Vai lá e dá aquele abraço nele. depois, conta pra gente como foi! Pra quê o orgulho, não é? Depois passa e não tem mais jeito...
Beijão!
Te adoro!!!
Quem me adora?!
DS
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